Todas as vezes que testemunho ou sofro alguma ingratidão,
lembro-me da passagem do Evangelho – aquela em que Jesus curou os dez leprosos
e só um voltou para agradecer. E ele perguntou: onde estão os outros nove? Essa
história nos indica que a ingratidão é algo comum, majoritário, no
comportamento humano. Estatisticamente, 90% daqueles que Jesus curou, não
mostraram gratidão.
Observando esse fenômeno, proponho-me aqui a examinar as
motivações psicológicas da ingratidão.
Quando alguém está precisando de ajuda – seja porque está
doente, com dificuldades financeiras, solitário, deprimido, em qualquer
situação de crise ou mesmo que essa crise seja um status permanente, desde a infância – é um
momento, uma fase, ou até uma existência inteira, até então, de fragilidade e
de carência. Para o orgulho humano, precisar do outro, tem algo de humilhante –
ainda que aquele que ajude (como o caso incontestável de Jesus) esteja ajudando
com total desprendimento e sem nenhum desejo de recompensa. Obviamente que este
estado de desprendimento e desapego dos resultados é algo bastante raro no
mundo, tão raro quanto a gratidão.
Ora, quando a pessoa que recebeu a ajuda, seja em forma de
dinheiro, apoio, solidariedade, incentivo, colo… – se vê numa situação melhor,
de maior segurança, de retomada de sua autonomia, até de euforia, porque
conquistou posições e patamares antes impensáveis (muitas vezes com o próprio
esforço sim, mas a partir da ajuda recebida) – então, a pessoa não quer mais se
lembrar daquele instante de fragilidade, quer negar para si mesma que precisou
um dia de apoio, quer atribuir todas as suas conquistas apenas a si mesma, aos
próprios méritos. Não quer dividir o sabor da vitória, relembrando um momento
em que estava “por baixo”. Então, nega o benfeitor, esquece-o, até pode
agredi-lo e eliminá-lo simbolicamente, porque é humilhante para o seustatus atual, fazer referências a um estado
anterior de carência. Então, faz aquilo que o ditado popular tão pitorescamente
expressa: “cospe no prato que comeu”.
A coisa se agrava mais quando existe uma forte relação afetiva
entre aquele que ajudou e aquele que foi ajudado – seja este um filho, um
irmão, um amigo íntimo, um parente distante ou próximo. Porque então, a ajuda
pode ter sido carregada de forte dose de afetividade, preocupação com o outro,
desejo profundo de felicidade e superação das dificuldades do ser amado. Nesse
caso, o ingrato precisa esquecer duplamente do benfeitor – o benefício prestado
e a afetividade entregue. E é então que a ingratidão pode doer mais
profundamente, porque se tratou não apenas de um benefício, mas de uma entrega
de si. Episódios assim também se encontram na vida de Jesus, como a traição de
Judas, a negação de Pedro e o abandono dos mais próximos, no momento da
crucificação. No caso dos leprosos, Jesus não tinha uma intimidade com eles.
Com os discípulos, eram amigos queridos. Nessa configuração, a pessoa não quer
apenas esquecer do benfeitor, para não lembrar de um momento de fragilidade,
ela quer se desobrigar de qualquer retribuição concreta ou afetiva com a pessoa
que foi determinante para suas realizações, superações e conquistas – sejam
elas de ordem material, intelectual ou moral. Quer se sentir livre de
compromissos com quem ficou para trás, porque tais compromissos, que
implicariam muito mais do que simplesmente reconhecer o benefício, mas também
num cuidado com o outro (como o caso de pais, irmãos, amigos), são uma quebra
na fruição de suas conquistas. Por exemplo, o indivíduo recebeu toda a formação
dos pais, todo o empenho pelas suas realizações, todo o carinho doado (claro,
com os limites e defeitos possíveis de todas as relações humanas) e quando ele
se vê numa situação de bem-estar, conquista e euforia, não deseja ver o estorvo
da fragilidade alheia – agora no caso, dos pais –que estarão por sua vez num
momento de carência. Voltar atrás e olhar para os benfeitores, amá-los, cuidar
deles, ter compromissos, é turvar o momento de segurança presente, é abrir
brechas para o afeto fluir, no meio da vaidade das conquistas.
Assim, podemos concluir que o que atrapalha a gratidão em todos
os casos é o orgulho – de não se admitir que se esteve já em situação difícil –
e o egoísmo – de não querer interromper o gosto da conquista, com a
preocupação, o cuidado e a dedicação ao outro.
Agora, analisemos toda a questão do ponto de vista daquele que
ajuda. Que motivações podem levar a pessoa a fazer um bem a quem esteja em
situação de carência ou precisão? São motivações sempre nobres, puras e
elevadas? Até que ponto podem também estar contaminadas de orgulho e egoísmo? E
pode essa possível contaminação na atitude do benfeitor provocar ou reforçar a
ingratidão?
O ideal de um ato moral – como também aponta o Evangelho e a
interpretação espírita da ética cristã – é o desinteresse. Esse desinteresse
deve ser financeiro, pessoal, afetivo. Ou seja, é preciso fazer o bem, sem nada
querer, esperar ou desejar de volta. A coisa porém não é tão simples. Primeiro,
porque ao fazer o bem, experimenta-se naturalmente um bem-estar interno (hoje
comprovado até através de pesquisas que mostram que dar, doar, ajudar libera
sensações agradáveis para quem faz).
Então, ao fazermos o bem, queremos nos
sentir bem? Sem dúvida que sim! E isso eu chamaria – repetindo uma definição
que ouvi do meu terapeuta – de um egoísmo saudável. Afinal, Jesus disse que
deveríamos amar ao próximo como a nós mesmos. Ou seja, todos os seres humanos
buscam prazer, felicidade, bem-estar e isso é natural. Ora, muito melhor que
esse bem-estar seja provocado por um fazer bem do que por um fazer mal ou por
qualquer tipo de vício autodestrutivo.
Apesar disso, considero que num nível mais elevado de doação, o
indivíduo dá apenas e somente pelo bem do outro, sem pensar na própria
felicidade. É certamente o caso de Jesus, ao morrer na cruz, como oferecimento
de um exemplo para a humanidade.
Mas a questão não fica nesse ponto. Quando nos encontramos
diante de alguém que está em situação de necessidade, os nossos sentimentos de
empatia e compaixão podem ser ativados e nos lançamos a uma ação benéfica para
o outro. Até aí, ótimo.
Mas podem surgir também sentimentos (às vezes
inconscientes) de superioridade e de prazer por estarmos numa posição de generosidade,
de vaidade por “sermos tão bons”! Então, o ato de ajuda carrega algo de
humilhante para o outro, sim. Porque podemos nos situar num patamar de cima,
onde o outro que recebe, se sente de fato esmagado pela nossa oferta. Se a
pessoa não tiver alternativa nesse momento, isso poderá depois gerar uma forte
repulsa pelo benfeitor. E tudo isso está muito bem descrito no Evangelho. O
problema é que bons impulsos podem ser manchados por esses sentimentos
negativos – então há de fato um bem praticado, houve um momento de
solidariedade sincera, mas depois o orgulho apareceu para estragar as coisas.
Outra forma de contaminar o gesto de ajuda está na cobrança de
retorno, que pode ser uma cobrança sutil ou explícita, pode aparecer na forma
de expectativa silenciosa ou de um “jogar na cara” ofensivo. A forma não
explícita gera mal-estar no beneficiário e a explícita provoca justa revolta.
Há inclusive pais e mães que praticam fartamente essa forma explícita,
humilhando filhos, por terem cumprido o que pais e mães devem fazer – doarem-se
inteiramente. Então, o ato do bem ou o amor doado estão claramente aprisionados
nas garras do egoísmo.
Essas manchas no ato de doar não eximem aquele que recebe do
sentimento de gratidão, sobretudo se há um vínculo amoroso envolvido no processo;
assim como a ingratidão não exime o benfeitor de continuar fazendo o bem;
porque é preciso compreender que estamos em processo de aprendizagem evolutiva
e ainda quando queremos praticar o certo e queremos elevar nossos sentimentos,
eles ainda se deixam macular por nossos atavismos milenares. Há que se ter
maturidade e compreensão mútua para entendermos as nossas fraquezas e as do
outro. Há também que se considerar que nossos papéis de benfeitores e
beneficiados se alternam no decorrer da vida. Todos temos fases, momentos de
fragilidade (basta lembrar de como chegamos e como partimos no mundo). Todos
temos oportunidade de ajudar alguém em outros momentos. Ora somos
necessariamente carentes, ora podemos ser generosos. Refletindo sobre tudo
isso, haverá mais oportunidades de superação e de caminharmos para formas
superiores de sentir e fazer.
Há porém algo mais sutil ainda, quando se trata de um benefício
e uma ingratidão entre dois seres que se amam intensamente – e não posso deixar
de imaginar que foi o que Jesus sentiu ao perguntar pelos outros nove leprosos
que não voltaram, que embora não tivessem intimidade com Jesus, o Mestre não
lhes era alheio em seu amor por todas as criaturas. A sua pergunta revela que
ele não ficou indiferente ao fato. É que quando se pratica um bem ou muitos
bens a um ser amado e a pessoa incorpora esse bem em sua vida e depois rejeita
asperamente o irmão, a mãe, o amigo que lhe foi alicerce de ascensão e
realização, o que se pode experimentar é uma profunda dor pelo outro. Jesus
lamenta a ingratidão dos leprosos, como se entristece pela fraqueza de Judas e
de Pedro. Mesmo se o nosso eu estiver já desprendido de toda mágoa e
suscetibilidade – o que requer obviamente um trabalho bastante cuidadoso –
podemos nos entristecer porque o ser amado está agindo de maneira tão acintosa
e ingrata, por ele mesmo. Esse sentimento será entremeado de compaixão, sem
falsa superioridade. Pode-se entretanto ainda misturar tais impulsos, enquanto
estamos a caminho: mágoa com compaixão, tristeza pelo outro, com esperança de
recompensa.
Enfim, tudo isso são aprendizados que nos competem assumir em
nossa jornada evolutiva. E, tinha Kardec razão ao dizer que as duas únicas e
maiores chagas da humanidade são o orgulho e o egoísmo.
Estejamos atentos a
isso!